terça-feira, 10 de julho de 2012

O Castigo de Quelone




O Olimpo estava em festa: Júpiter e Juno iriam finalmente se casar.
As duas imensas portas do Empíreo, algodoadas de nuvens, haviam sido abertas de par
em par pelas três Horas — Eunomia, Dice e Irene -, que faziam o papel de anfitriãs. Atrás delas
podia-se divisar perfeitamente o brilho feérico e resplandecente do palácio dourado onde iria se
realizar a tremenda festa.
Os convidados iam chegando em grande número, atravessando a ponte multicolorida do
imenso arco-íris.
— Vejam, irmãs — disse Eunomia, radiante -, quantos convidados! Estejamos atentas
para que não nos escape presença alguma.
— E nenhuma ausência, também! — disse Dice, cuja tarefa era ir riscando os nomes dos
convidados que chegavam.
Os principais deuses do panteão olimpiano iam chegando, sozinhos ou aos pares,
conversando alegremente. Ceres, vestida com uma túnica drapejada e esvoaçante, surgiu, entre
tantas outras divindades, toda sorridente.
— Nossa! — disse Irene, a porteira esbelta. — Ela caprichou mesmo! Junto dela estava
Vesta, a deusa do lar e da lareira.
— Sempre recatada, mas também sempre encantadora! — comentou Eunomia,
afastando-se um pouco para permitir a sua passagem.
Semêle e seu acompanhante Prometeu, vinham abraçados, dando uma gostosa gargalhada. Do que riam
tanto?
Os grupos foram passando um a um até que chegou o casal mais curioso: a maravilhosa
Vênus e seu truculento esposo Vulcano.
— Vejam só, será que finalmente ele resolveu tomar um banho? — cochichou Irene à sua
irmã Dice, que ocultou no véu um sorriso discreto.
Quase todos os convidados já haviam chegado, inclusive Netuno, com sua corte aquática,
úmida e festiva, e o sombrio cortejo de Plutão.
De repente, porém, Eunomia, que passava em revista com suas irmãs a enorme lista com
os nomes riscados, escutou uma voz soar bem ao seu lado.
— Porteiras do Olimpo, como estão? Era Hélios, o primeiro deus-sol.
— Ótimas! — respondeu Irene, pelas três. — Acho que não falta mais ninguém, e você
deve ser o último.
Na verdade Hélios fora o encarregado de levar os convites do casamento a todos os
recantos do Universo. Finalmente, retornava de sua trabalhosa missão.
— Não, esperem! — gritou Eunomia, colando o alvo dedo sobre um nome da lista.
Os rostos das duas irmãs, mais o de Hélios, voltaram-se atônitos para ela.
— Como? Ainda falta alguém? — perguntou o deus.
— Sim, a ninfa Quelone! — exclamou Eunomia. — Alguém a viu passar? -Não, ninguém
a vira passar.
— O que terá acontecido? — disseram as Horas numa só voz.
— Vou refazer o trajeto até sua casa e ver o que houve!
O filho de Hipérion percorreu grande parte da estrada, e quanto mais avançava, mais temia
pelo atraso — ou mesmo pela ausência definitiva da ninfa Quelone.
"Por Júpiter, se Juno descobre que ela ignorou sua festa, a matará!", pensava o deus
mensageiro, enquanto apertava o pétaso para que não voasse de sua cabeça.
Quelone, entretanto, ainda estava descansada em sua casa, à beira do rio.
— Que calor! — disse ela, espreguiçando-se. — Essa tal de Juno, também, pensa que eu
sou o quê, para me largar desta distância toda até a sua casa? Só para ir lhe bajular?
A vontade de ir para a festa de casamento de Juno era nenhuma. Na verdade não tinha
vontade de fazer nada. Sim, porque apesar de ser uma ninfa adorável, era também a mais
preguiçosa das criaturas. "Miseravelmente preguiçosa", como lhe dissera um dia um fauno das
redondezas.
Por diversas vezes Quelone ensaiara a sua ida ao casamento. Na verdade, passara a manhã
toda indecisa: que roupa usaria, afinal? Mais vaporosa ou mais discreta? Isto implicava uma
escolha — e escolher era tão cansativo! E o maldito penteado, solto ou preso? Pintaria ou não as
suas compridas unhas? Ai! Dez unhas nas mãos e mais dez lá nos pés! E a que horas deveria sair?
Um pouco mais cedo ou bem mais tarde?
Afinal de contas, deveria mesmo ir?
Cogitando e refrescando os pés na água, a ninfa deixava o tempo passar.
— Acho que agora não dá mais tempo... — pensou, ao observar o sol lá no alto. De
repente, Hélios tapou o sol. Quelone, já de olhos fechados, murmurou."
— Ih, agora é que não vai dar para ir mesmo... Lá vem chuva!
— Sua preguiçosa, eu já imaginava! — disse o deus, pousando ao seu lado. Quelone
levantou-se, de susto.
— Ah, é você? — disse ela, com a mão em pala sobre os olhos. — Sempre correndo pra
cima e pra baixo, não é?
— Voando, querida, voando! — respondeu Hélios, passando uma água no rosto.
— Humpf! — fez Quelone, esgotada, fechando os olhos outra vez.
— Vamos, levante-se, preguiçosa! Está quase na hora das bodas de Juno.
— Não posso — disse Quelone. — Acordei com o pé machucado.
— O lençol o esmagou? — perguntou Hélios, com um tom de ironia.
— Ai, é verdade — disse a ninfa, colocando-se em pé com fingida dificuldade. Mas o
deus não estava para lorotas e, em dois tempos, colocou-a no rumo da estrada. Mas a ninfa
teimava em atrasar o seu passo: ora parava para descansar, ora simulava uma insolação. As horas
passavam, e Hélios, aflito, sentia que daquele jeito jamais chegariam.
— Bem, adeus, vou indo na frente, senão Juno também me matará! — disse o deus,
perdendo de vez a paciência.
— Isto, vá logo, apressadinho! — disse Quelone, sentando numa pedra azulada, bem no
começo da longa estrada do arco-íris que levava até o palácio de Júpiter. — "Por que não me
levou nos braços, então, se estava com tanta pressa?", perguntou-se, mal-humorada. "Depois a
preguiçosa sou eu!"
Quelone adormeceu bem na entrada do arco-íris. Quando acordou novamente, a
magnífica festa já havia acabado. Grupos alegres já voltavam, cruzando por ela.
— Que festa, hein? — dizia um fauno, todo descabelado.
— Esta, sim, valeu a pena! — dizia uma nereida, que parecia ter abusado um pouco do
vinho.
Deuses, ninfas, faunos, todos esbarravam em Quelone, que era a única a seguir em
sentido contrário.
— Esqueceu algo, querida? — perguntou-lhe Dóris, esposa de Nereu.
— Não me amole — replicou Quelone.
Apesar da festa já haver acabado, ela ainda tentava avançar, nem que fosse para se
explicar com a nova rainha do céu.
— "Rainha do Céu!" — tripudiou a ninfa. — "Ai, Rainha do Céu, desculpe o atraso!"
"Tudo bem, Rainha do Céu?" "Quem diria, hein: Rainha do Céu!" Quer saber de uma coisa? Vou é
voltar já para casa!
E voltou mesmo. Um pouquinho mais rápida, desta vez.
Quando chegou lá, jogou-se em seu leito, exausta. Mas Mercúrio a aguardava.
— Você não foi até lá, então? — disse o deus, com o cenho franzido.
— Não incomoda, cabeça de fogo — resmungou a ninfa, cobrindo o rosto. -Diz lá pra
Rainha do Céu que um dia desses apareço para dar os parabéns.
Hélios, perdendo definitivamente a paciência, pegou-a pelos pés e arrojou-a dentro do
lago. Em seguida lançou também a própria casa da ninfa em cima dela.
— Aí está! — disse o deus, dando as costas e indo embora.
A pobre Quelone ressurgiu instantes depois das profundezas do lago. Seu rosto estava
mudado, e era como o de um enrugado lagarto. Tinha agora quatro pernas — quatro pernas
imensas — e em cima de suas costas pesava a sua antiga casa, virada numa imensa e pesada
carapaça. E Quelone nunca fora tão lenta como agora!
Assim a ninfa que faltou à cerimônia de casamento do grande Júpiter e da poderosa Juno
foi transformada no animal hoje conhecido como tartaruga.

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