sexta-feira, 13 de julho de 2012

O Nascimento de Baco


A princesa Sêmele, filha de Cadmo e Harmonia, estava deitada em seu leito. Estava só,
mas ao seu lado ainda havia a marca profunda de um corpo — o corpo de um deus. De fato,
Júpiter, o mais poderoso dos deuses, estivera até há pouco gozando dos prazeres que lhe
proporcionara sua mortal amante.
— Béroe! — disse Sêmele, espreguiçando-se. Um raio cálido de sol que entrava pela
janela de cortinas balouçantes acariciou seu ventre.
Alguns instantes de silêncio.
— Béroe, surda! — gritou Sêmele, apoiada aos cotovelos. Uma velha criada entrou
apressada.
— Desculpe, minha ama...
— Béroe, esta noite foi verdadeiramente divina... — disse a jovem, sorrindo. "Então é
tudo verdade!", pensou Juno, pois era a esposa divina de Júpiter quem estava ali, metamorfoseada
na velha criada de Sêmele.
— Vamos, ajude-me a me vestir — disse a jovem, erguendo-se.
— Desculpe, ama, me intrometer em tais assuntos — disse Juno disfarçada -, mas está
certa, verdadeiramente, de que este homem que priva de seu leito todas as noites seja mesmo
Júpiter, o deus supremo?
— Que diz, Béroe? — exclamou Sêmele, enrubescendo. — Um homem, ele? Sua tonta,
nenhum mortal poderia amar uma mulher como este divino ser! Homem algum teria o seu toque
misterioso, nem beijo algum teria a volúpia que ele, Júpiter, põe em seus divinos lábios...
Sim, Juno sabia perfeitamente de tudo isso. "Mas as carícias que ele lhe dá nunca serão
mais do que o mero produto de um instante, estando sempre conspurcadas pelo susto e pelo
medo de um terrível castigo", pensava Juno, tentando vingar-se mentalmente da adversária.
Entretanto, desconfiava em seu íntimo, mesmo sem dar-se conta claramente disto, de que
justamente ali poderia estar uma parcela do encanto e das delícias que ela, esposa legítima, jamais
poderia desfrutar.
— Mas existem tantos homens, bem, digamos... — disse a falsa Béroe, fingindo escolher
o termo certo -... tão hábeis, minha ama, que às vezes nós mulheres, frágeis e tolas que somos,
deixamos nos enganar com humilhante facilidade...
— Não diga tolices, Béroe — disse Sêmele, entregando as vestes à velha e lhe dando as
costas nuas. — Vamos, vista-me.
— Eu mesma, minha ama — prosseguiu Béroe, sem dar atenção às reprimendas -,
quantas vezes fui ludibriada por homens que me pareceram deuses.
— Você?! — exclamou Sêmele, com um riso escarninho. — Você, Béroe, amada por um
deus? Rá!
Sêmele, contorcendo-se de riso, impedia que a ama lhe cobrisse o corpo, e embora Juno
soubesse que o deboche não fora feito a ela, ainda assim sentiu-se tomada pelo rancor — tal o
poder que uma afronta, mesmo feita por engano, pode ter sobre a vaidade feminina. Enquanto
escutava o riso, sem poder concluir sua tarefa, Juno percebeu nas costas da jovem as marcas
inequívocas que o amor deixara em sua — sim, ela tinha de admitir — nudez perfeita. Juno tinha
diante de si o mapa exato do país da traição: cada mancha arroxeada que Juno encontrava sobre
aquela alva pele simbolizava uma província do prazer que Júpiter, auxiliado pelos desvelos da
amante, havia descoberto e marcado em seguida com a mesma ganância do explorador que
descobre um lugar paradisíaco e instala com fúria o seu marco a fim de deixar bem clara a sua
posse exclusiva.
Sêmele fez menção de virar-se, mas a falsa Béroe não lhe permitiu; temia ver em que
outros lugares infames poderiam estar depositadas aquelas manchas.
— Vamos, minha ama, deixe-me vesti-la — disse a criada, introduzindo a veste pela
cabeça, como quem ensaca algo que deseja ver logo ocultado.
— Calma, Béroe, não se zangue... — disse a jovem, ainda tomada pelo acesso de
hilaridade.
— Peça-lhe uma prova... — disse Béroe, com voz insinuante.
— O quê?
— Peça a ele uma prova, cabal e definitiva, de que ele é mesmo quem afirma ser.
— Mas que prova melhor poderia Júpiter me dar, além das que já tenho? -disse Sêmele, já
vestida, abraçando-se com braços fingidamente alheios.
— Você sabe que os deuses usam uma forma humana apenas para se relacionar com os
mortais — disse a Juno disfarçada. — Peça, então, que ele se mostre para você em todo o seu
divino esplendor. Sêmele ficou alguns instantes pensativa, enquanto Béroe penteava, fio a fio, os
seus longos cabelos. — Está bem, lhe pedirei a tal prova! — disse a bela filha de Cadmo.
— Apenas não esqueça de uma coisa — disse a velha, com um sorriso pérfido no
escondido rosto -, deve fazer antes com que ele jure pelo Estige que não lhe negará qualquer
pedido.
— Por que pelo Estige? — quis saber a jovem.
— Porquê este é um juramento fatal, ao qual os próprios deuses estão submetidos —
disse Juno, em tom solene. — Todo aquele que jura pelo rio infernal deve cumprir rigorosamente
com a sua palavra, e nem mesmo Júpiter tem poder para transgredi-la.
Dito isto, a falsa Béroe afastou-se, e Sêmele ficou entregue aos seus próprios
pensamentos. Quando a noite chegou, Júpiter reapareceu, como de costume. -Júpiter, meu
amado! -disse a jovem, lançando-se a seus braços.— Desde que você começou a vir até mim, nos
braços da noite, que eu nunca mais soube dizer, com certeza, quando é dia ou quando é noite.
— Por que estas palavras? — perguntou o deus supremo.
— Porque me parece que a noite quando chega, trazendo-te consigo, me traz um dia
ainda mais claro e brilhante do que aquele que está partindo, apenas isto.
Os dois amantes abraçaram-se, e após um longo beijo, Sêmele, tornando-se séria, tomou
o rosto de Júpiter em suas mãos.
— Meu querido, preciso que você me dê uma prova de seu amor.
— Prova de amor? — exclamou Júpiter, surpreso. — Para quê?
— Não importa; apenas prometa. Prometa pelo Estige que me dará tal prova. Só assim
poderei ter sossego em minha alma e confiar plenamente em você.
Júpiter relutou durante um longo tempo. Jurar pelo Estige — o mais irrevogável dos
juramentos -, e tudo apenas por um capricho feminino!
— Está bem, eu prometo — disse Júpiter, afinal.
— Vamos, pelo Estige... — disse Sêmele. — Diga, por favor...
Júpiter acedeu, contrariado, e fez o juramento. Sêmele, aliviada, foi até o fundo do quarto
e parou, com um ar misterioso estampado no rosto.
— Quero agora uma prova definitiva de que você é mesmo o Júpiter que tanto amo —
disse ela, com o ar subitamente decidido.
— Do que está falando, criatura?
— Mostre-se agora, diante de mim, tal qual é! Júpiter ficou paralisado.
Não, aquilo não podia ser verdade. Ela devia estar brincando, ou então louca. Claro, só
uma louca lhe pediria uma coisa destas. E ele sabia perfeitamente que não poderia fazer isto sem
destruí-la.
Júpiter chegou a abrir a boca para lhe explicar o motivo, mas subitamente deu-se conta de
que o destino da pobre moça já estava selado, pois ele havia feito o juramento fatal. Nada poderia
fazer com que ele voltasse atrás — mesmo que ela mudasse de opinião ou tentasse anular sua
vontade anterior.
"Finalmente verei o que mortal algum antes viu", pensou a jovem, extasiada.
Júpiter, pesaroso, afastou-se um pouco, embora soubesse que era um ato inútil. Depois,
concentrou-se e fez com que suas formas humanas fossem lentamente se apagando. Ao mesmo
tempo uma luz, a princípio muito tênue, foi brotando do seu corpo, em dourados feixes, como se
um segundo sol estivesse a nascer dentro dele.
Sêmele deu-se conta, subitamente, do que estava para acontecer, quando viu a vaporosa
cortina atrás do deus desaparecer como num sopro, e uma nuvenzinha de fagulhas ser expulsa
pela janela, impelida pelo vento.
— Não, Júpiter... Não! — gritou a pobre jovem, mas já era tarde demais. Uma bola de
chamas irrompeu de dentro da forma humana do pai dos deuses e se expandiu por todo o quarto;
relâmpagos espalhavam-se em todas as direções e um fragor intenso de chamas devorando tudo
abatia-se sobre a jovem infeliz.
— O, maldita Béroe! — gritava Sêmele, ajoelhada, com a cabeça oculta e os ouvidos
tapados. — Béroe e a minha maldita desconfiança foram a minha perdição!
Caiu no chão o corpo chamuscado e já sem vida de Sêmele. Dentro dela, porém, sem que
ela tivesse sequer sabido, ainda pulsava outra vida.
Júpiter, dando-se conta disso, retirou do ventre da amante morta o produto divino dos
seus amores: um bebê, muito jovem ainda, mas que respirava. Sim, ele respirava! Júpiter, antes
que o palácio inteiro ardesse, retomou sua forma humana e, fazendo um talho na própria perna,
introduziu o pequeno e delicado ser dentro de sua própria coxa.
"Não poderia encontrar um refúgio mais seguro", pensou Júpiter, que já era capaz de se
alegrar outra vez, com a descoberta daquele agradável consolo.
— Afinal, para alguém que já gestou um ser em sua própria cabeça, gestar outro em sua
coxa não será coisa tão penosa... — disse o deus supremo, indo embora.
E foi assim que dali a algum tempo veio ao mundo Baco, o único deus cujos pais não
eram ambos divinos, sendo filho de uma divindade com uma bela mas infeliz mortal.

Netuno, Senhor dos Mares


Netuno, após ter sido engolido por seu pai, Saturno, a exemplo de seus irmãos, foi um dia
regurgitado, depois que Júpiter obrigou o velho deus a ingerir uma beberagem mágica.
— Pronto, meu irmão — lhe disse Júpiter, satisfeito, depois de ambos haverem derrotado
Saturno e seu poderoso exército na famosa Guerra dos Titãs. -Agora já pode tomar posse do
mar, que é a parte do Universo que cabe a você. A mim caberão os céus, enquanto que nosso
irmão Plutão reinará nos subterrâneos.
Netuno, todo sorrisos, abraçou o irmão. Mas embora todo o imenso território que lhe
coube, não foi isto o bastante para contentá-lo. De fato, Netuno era um deus ambicioso, invejoso
e intratável, e desde aquele dia entrou em inúmeras disputas com as mais diversas divindades:
contra Minerva, disputou a Ática; contra Juno, o domínio da Argólida; contra Apólo, pelo
controle do arquipélago de Delfos; e contra o próprio Júpiter, numa tentativa abortada de
destroná-lo, ousadia que lhe custou o castigo de ter de servir o rei Laomedonte e construir para
ele, pedra por pedra, as muralhas da cidadela de Tróia.
— Só entro em fria, mesmo! — dizia ele, enquanto carregava as imensas pedras. — E
além de tudo ainda tenho de agüentar este tagarela dedilhando a lira o dia inteiro. — Netuno
referia-se ao deus Apólo, que também estava ali de castigo por uma falta cometida contra Júpiter.
— Sou um astro — disse o acalorado deus do sol, ajeitando-se numa sombrinha para
melhor exercer o seu delicado ofício. — Nasci só para brilhar.
Netuno, para piorar, ainda teve o dissabor de ver-se logrado por Laomedonte, que
recusou-se a lhe pagar o serviço.
E assim seguia sua vida, de deus rabugento e colérico, sempre fincando seu tridente no
fundo do mar e provocando terremotos a propósito de qualquer contrariedade, a ponto de acabar
conhecido como "Netuno, abalador da terra".
— "Netuno, o importuno", eis o que é! — disse um dia Júpiter, perdendo de vez a
paciência. — É, não tem jeito mesmo, vamos ter de lhe arrumar uma mulher...
Depois de muito pesquisar, o pai dos deuses chegou à conclusão de que a solução estava
nas mãos de Nereu, "o velho do mar". Este deus decrépito era filho da velhíssima Terra e do
antiqüíssimo Mar, e tinha uma penca de filhas, as Nereidas, assim chamadas em sua homenagem.
— Mercúrio! — disse Júpiter.
— Sim, meu pai — disse o deus dos pés ligeiros.
— Vá até o fundo do mar e me traga o velho Nereu.
No mesmo instante, Mercúrio, que era extremamente rápido em tudo que fazia, calçou
suas sandálias aladas e rumou para o oceano. Dando um mergulho espetacular, chegou até os
domínios de Nereu.
Mais tarde, no Olimpo, Júpiter exclamou, ao ver a visita:
— Nereu, velho amigo, que bom vê-lo aqui no Olimpo outra vez!
— O que ordena, deus supremo? — disse Nereu de longas e alvas barbas.
— Quero que ceda uma de suas filhas a meu irascível irmão — disse Júpiter, pondo uma
mão sobre o ombro do velho amigo. — Não posso mais suportar as suas teimosias e temo que
haja um confronto mais sério entre nós, caso ele não se acalme.
— Pois não, Júpiter poderoso — disse Nereu. — Pode escolher qualquer uma de minhas
cinqüenta filhas.
— Cinqüenta? — exclamou Júpiter, puxando o lóbulo da divina orelha. -Mas não eram
cem?
— Podem ser cem, como podem ser mil, deus supremo — disse o pobre Nereu, cuja
memória já claudicava há muito tempo.
Depois de estudar a questão e analisar uma por uma as Nereidas, chegaram, enfim, a um
consenso:
— Anfitrite será a esposa de Netuno! — disse Júpiter, jubiloso.
— Anfi-quem? — disse o pobre Nereu.
— Esqueça — disse Júpiter, dando uma palmadinha na face enrugada do amigo.
No mesmo dia Júpiter comunicou a escolha ao mal-humorado irmão, que decidiu, ainda
assim, conhecer a sua futura noiva.
— Vá com calma — disse Júpiter. — As filhas de Nereu costumam ter o senso de
independência muito pronunciado.
Mas Netuno, que tinha o senso de prepotência ainda mais pronunciado, não se intimidou.
— Onde posso ir encontrá-la? — disse, já se ajeitando.
— Ela está na ilha de Naxos, junto com suas irmãs — disse Júpiter. Netuno, confiante,
partiu de seu palácio azulado no fundo do mar em direção a Naxos, conduzindo seu carro
puxado por golfinhos.
Fazia um lindo dia de sol quando chegou às margens pedregosas da ilha. De fato, por
cima dos grandes rochedos franjados pelas espumas do mar, lá estavam as encantadoras filhas de
Nereu, algumas deitadas, descansando, enquanto outras, mais animadas, executavam os passos de
uma movimentada dança. De vez em quando uma delas, estirando sua longa cauda recoberta de
escamas douradas, dava um mergulho repentino nas águas verdes do arquipélago: um grande
borrifo verde erguia-se, então, como se elas lançassem lá do fundo um imenso punhado de
esmeraldas, que subiam, faiscando, em todas as direções.
Netuno, boquiaberto, pasmava para aquela cena paradisíaca.
— Verdadeiramente encantadoras... — exclamou o excitado deus, tratando, em seguida,
de sentar-se ligeiro em seu carro.
De repente, escutou a voz de uma das Nereidas.
— Ei, Anfitrite! Venha juntar-se a nós, sua boba!
Os olhos de Netuno voltaram-se para uma grande pedra isolada, que estava situada mais
para dentro do mar. A pedra tinha o formato de um leito, magnífico trabalho de polimento
operado pelas perfeccionistas Ondas, que durante séculos, com toda a calma, a haviam polido até
dar-lhe aquela conformação ideal.
Em cima daquele leito solitário e da cor do chumbo estava estendida a divina Anfitrite.
Era uma das poucas Nereidas a ter os cabelos negríssimos, da cor da noite, enquanto que as
escamas de sua longa cauda tinham uma brilhante cor prateada, matizada por maravilhosos
reflexos azulados e cor-de-rosa que se alternavam ao menor movimento. Com as costas coladas à
pedra, Anfitrite dos cabelos negros tinha a face voltada para o alto; seu braço direito, caído sobre
o rosto, protegia seus olhos dos raios fortes do sol, enquanto os peitos firmes apontavam para o
céu.
Netuno empinou seu carro na direção da Nereida de esbelto corpo. Emparelhando com a
rocha, Netuno esteve longo tempo a observar os traços de Anfitrite, para ver se podia confiar em
suas virtudes. Mas a ninfa adorável permanecia com o rosto quase completamente oculto pelo
braço. O deus dos mares, na verdade, só podia observar direito o nariz perfeitamente aquilino de
Anfitrite e sua boca úmida e carnuda, maravilhosamente desenhada para o beijo.
"Que mulher!", pensou Netuno, quase apaixonado. "Se tais são seus lábios e seu nariz...
oh, como não haverão de ser seus divinos olhos!"
Um arfar mais indiscreto do deus, contudo, despertou a atenção da formosa Anfitrite. Seu
braço caiu e as pestanas de longos cílios recurvos ergueram-se, piscantes — e foi, então, como se
duas estrelas houvessem se descortinado. -Divina e encantadora Anfitrite! — disse a voz rouca ao
seu lado. — A partir de hoje será minha divina esposa e a você caberá a honra de ser, para
sempre, o repositório sagrado de meu divino sêmen.
Anfitrite, assustada, ao enxergar a seu lado aquele homem espadaúdo, de longos cabelos
recobertos de mariscos e uma barba hirsuta tostada pelo sol a lhe dizer tais disparates, deu um
ágil mergulho para dentro da água. Netuno ainda conseguiu agarrar um pedaço de sua cauda, mas
as escamas lisas escorregaram por entre seus dedos, até surgir a grande e quase transparente
barbatana, leve e fremente como um leque, que lhe deu uma bofetada, antes de desaparecer nas
ondas.
— Para onde foi... ? — bradou o deus, desesperado.
E desde aquele dia Netuno perdeu Anfitrite de vista. Percorreu todos os mares, foi mil
vezes ao palácio de Nereu, nas profundezas do mar, mas ninguém sabia dizer onde ela estava.
Irado, Netuno começou a sapatear e a bater ferozmente com seu tridente por toda parte,
demolindo os imensos rochedos subterrâneos e provocando, com isso, terríveis maremotos na
superfície dos oceanos. Ondas imensas eram cuspidas para o alto e montanhas inteiras
arremessadas para as costas das cidades marítimas, levando o pânico a todos os mortais.
Finalmente, Júpiter, no último limite da aflição, ordenou a Nereu que revelasse o local
onde a apavorada Anfitrite fora se ocultar. O pobre velho não sabia, mas sua esposa Dóris, como
toda boa mãe, sabia — e muito bem.
Depois de um sem-número de pedidos, Júpiter finalmente conseguiu obter da mãe das
nereidas o que os rogos e súplicas do velho marido, é claro, não tinham podido alcançar.
— Somente as carícias de sua divina filha poderão suavizar o rude temperamento de meu
irmão — disse Júpiter à ainda reticente Dóris. — Quando isto acontecer, e a crosta primitiva de
meu irmão houver caído, verá ela que se casou com um homem gentil e atencioso, além, é claro,
de ter se tornado rainha de todo um império.
— Rainha de todo um império... — resmungou várias vezes a mãe de Anfitrite, até que
finalmente cedeu, embora fizesse questão de afirmar que não fazia o menor caso de vir a se
tornar mãe da "rainha de todo um império".
Revelado o esconderijo da filha de Nereu, o impaciente Netuno rumou para lá,
silenciosamente, montado em seu discreto golfinho. Dentro de uma caverna, oculta por uma
floresta de líquens, estava a assustada Nereida, quando Netuno, pé ante pé, adentrou o recinto.
— Anfitrite adorada! — disse ele, cujas barbas estavam lustrosas do aromático âmbar. —
Venha comigo e garanto que não terá jamais motivos para se queixar de mim.
Netuno parecia realmente mudado: trajado modestamente, sem aquele ar arrogante que o
caracterizava, havia deixado em casa até o seu horroroso tridente. Anfitrite, cautelosa, estudou
ainda, longamente, o aspecto do deus. Depois, ainda indecisa sobre se deveria ou não aceitar
aquela proposta, perguntou, amuada:
— E quanto àquele negócio de "meu repositório de sêmen"?
— Oh, não, esqueça esta bobagem! — disse Netuno, baixando os olhos. -Você será, para
sempre, apenas o repositório de minha divina devoção e meu divino carinho.
Ainda mais corado por aquele sorriso de superioridade da divina Nereida, Netuno
enterrou as unhas nas palmas das mãos e resolveu voltar ao velho estilo.
— Venha, vamos de uma vez, minha rainha! — disse, encurralando-a na parede da gruta
úmida e dando-lhe um beijo intenso e apaixonado.
Depois levou-a nos braços até o golfinho e retornaram para o palácio de Netuno, onde
ambos, desde então, governam felizes o imenso império dos mares.

O Nascimento de Minerva



— Júpiter, preciso muito lhe falar — disse um dia a Terra, sua avó.
A velha deusa, que engendrara Saturno, o pai devorador de filhos, tivera um sonho
profético no qual a antiga e violenta maldição familiar de filhos destronarem os pais ameaçava
recomeçar.
— Agora será com você, Júpiter, que a história vai se repetir! — disse a Terra, perfurando
as nuvens com sua bengala de pedra.
Na mente da deusa passou, como num relâmpago, todo o seu tormentoso passado com o
brutal Céu, que a obrigara a esconder em seu ventre todos os filhos gerados por ele. Depois
enxergou seu filho Saturno chegando em casa com a foice ensangüentada e o ar aliviado do
jovem que triunfa, afinal, sobre a tirania decrépita dos pais. "Seu odioso marido está mutilado e o
poder agora é todo meu!", dissera o jovem deus, ao destronar o próprio pai.
— Não diga tolices, minha vó! — bradou o pai dos deuses, despertando a Terra de seu
devaneio. — Quem se atreverá a levantar mão ímpia contra o soberano do mundo?
A velha deusa sorriu. Fora esta mesma frase que Saturno envelhecido repetira, um pouco
antes de seu próprio filho Júpiter expulsá-lo do trono, tornando-se o novo e supremo mandatário
do Universo. Júpiter, entretanto, era muito jovem e estava mais preocupado em conquistar o
coração da sua amada Métis, a deusa da Prudência.
— Não se case com ela — advertiu a Terra, com severidade -, pois de seu ventre sairá
aquele que trará a sua ruína.
— A deusa meiga e de olhos mansos como a corça será capaz, então, de gerar um tal
monstro? — disse Júpiter, alisando sua negra e ainda curta barba.
— Sim, seu tonto, a meiga e de olhos mansos como a corça! — bradou a Terra, cujas
palavras, com a idade, iam perdendo o mel da paciência. — Na verdade serão dois filhos; o
primeiro será uma mulher, a mais justa e sensata das deusas, que só lhe trará alegria e motivo de
orgulho...
Júpiter sentiu um alívio percorrer suas divinas entranhas.
-... mas cuidado com o segundo! -prosseguiu a deusa. — Ele será o flagelo de sua
existência. Muito mais insubmisso do que seu pai ou você próprio, ele o destronará
sangrentamente, tomando o seu lugar para todo o sempre. E com o filho dele acontecerá o
mesmo, e assim por diante, até que alguém decida pôr um fim a esta orgia de parricídios.
Durante um longo tempo os dois estiveram em silêncio. De vez em quando Júpiter erguia
os olhos para a avó, que permanecia parada à sua frente, apoiada ao seu cajado; em seus olhos
inflamados pela profecia brilhava ainda, com a mesma intensidade, a luz ofuscante da
determinação.
— Está bem, vovó — disse, afinal, o pai dos olímpicos -, você venceu. Vou falar com a
adorável Métis.
No mesmo dia Júpiter dirigiu-se à morada da deusa, que ficava no fundo do oceano.
— Adorável Métis, meiga e de olhos mans... — disse Júpiter, interrompendo-se.
— Oh, é você, meu querido Júpiter! — exclamou a deusa, caindo em seus braços. —
Estava morta de saudades...
"Tão meiga e tão feminil ao mesmo tempo!", pensava, enquanto deslizava os dedos pelas
curvas simetricamente perfeitas das costas da encantadora Métis.
Num instante estavam ambos sobre o leito. Júpiter, esquecido das advertências de sua
avó, passou o resto do dia nos braços da divina amada, descobrindo a cada instante, em seu
corpo, novos e insuspeitados mistérios.
Ao final do dia, entretanto, ela voltou-se para ele e disse:
— Júpiter, regozije-se: estou grávida!
— Grávida?! — exclamou o deus olímpico.
— Sim, seremos ambos pais de uma bela menina!
Júpiter ficou paralisado por alguns instantes. De repente, porém, como quem toma uma
súbita decisão, tomou-a nos braços e disse, num tom enigmático:
— Está enganada: ambos seremos mães.
Nem bem dissera isto, Júpiter abriu desmesuradamente a boca — onde ele vira isto antes?
— e engoliu a pobre Métis!
— Pronto, minha amada — exclamou ele. — Agora estamos unidos para sempre.
Imediatamente o deus retornou para junto da avó, como obediente neto que era, e lhe
comunicou, cheio de orgulho:
— Minha vó, acabei de comer a formosa Métis!
— Menino sujo! — gritou a velha, dando uma bastonada em sua cabeça. Custou um
pouco, mas afinal Júpiter conseguiu fazer a velha entender o que quisera dizer e acabou mesmo
elogiado por ela.
Os dias passaram e as apreensões foram se desvanecendo, até que, certa manhã, Júpiter
acordou com uma terrível dor de cabeça.
— Céus, o que é isto em minha cabeça? — gritava.
Todos os deuses acorreram para ver que gritos eram aqueles.
O deus dos deuses gemia, enquanto os demais se agitavam em torno.
— Sua cabeça cresceu assustadoramente! — disse Mercúrio, espantado.
— É da ambrosia... Eu disse pra não abusar! — gritava, aflita, a sua mãe, Cibele.
— Calem a boca, todos, e chamem Vulcano — gritou Júpiter, com as duas mãos postas
na cabeça.
Dali a instantes surgiu o deus das forjas, coberto de fuligem.
— O que houve, meu divino pai?
— Tenho algo dentro da cabeça! Descubra o que é — exclamou Júpiter.
— Sim, de fato, parece haver algo muito grande dentro dela... — respondeu Vulcano,
espantado com o gigantesco tamanho da cabeça de seu genitor. — O que será?
— Mas foi o que lhe perguntei! — respondeu Júpiter, colérico. — Vamos, pegue suas
ferramentas, abra minha cabeça e retire logo daí de dentro seja lá o que for que esteja me
atormentando!
Vulcano abriu seu maravilhoso estojo. Dentro dele, em pequenos compartimentos,
estavam dispostas em perfeita simetria as suas extraordinárias e eficientes ferramentas.
— Hm... Martelo, broca, chave, pé-de-cabra... Calma, meu pai, que a coisa já vai!
O deus dos artífices encontrou, afinal, o seu melhor martelo e avançou destemidamente
para o pai.
Um calafrio de horror percorreu os nervos e tendões de Júpiter. "E se a velha Terra
estiver senil, e for ele, afinal, o filho que me tirará o cetro?", pensou Júpiter de olhos arregalados
ao ver avançar o filho imundo, com aspecto de demônio, balançando o martelo gigantesco, como
para lhe tomar o peso.
— Este não falha, meu divino pai! — disse Vulcano, arreganhando seus quatro negros
dentes, e vibrou o martelo ao primeiro golpe.
O pobre Júpiter sentiu o mundo rodar.
Vibrou o martelo ao segundo golpe.
Uma rachadura surgiu de alto a baixo em sua cabeça.
— Só mais uma, pai! — disse Vulcano, respirando fundo e erguendo o martelo o mais
alto que pôde.
PA!, vibrou o martelo ao terceiro golpe.
Um jato de luz ofuscante escapou pela rachadura, fazendo com que os deuses corressem
para todos os lados. De dentro da cabeça de Júpiter surgiu, então, uma outra cabeça, revestida
com um magnífico capacete dourado.
Um grito de espanto varreu o Olimpo inteiro.
Logo em seguida surgiu o resto do corpo da criatura — uma mulher, vestida inteira, dos
pés à cabeça, com uma reluzente armadura. Todos os deuses estavam boquiabertos, e até Apólo,
que conduzia no alto o seu flamejante carro do sol, parou por um instante para observar aquele
fantástico prodígio.
A mulher saltou para o chão e deu um grito de guerra, o mais alto que o Olimpo já havia
escutado. Depois pôs-se a executar, de maneira absolutamente perfeita e graciosa, os passos do
mais estranho e original peã que os olhos humanos e divinos já haviam contemplado.
— Honra e Paz para você, divino pai e senhor absoluto do Universo! — disse a criatura,
após encerrar a sua magnífica dança marcial. — Sou Minerva, sua filha, gerada de seu sêmen para
cumprir as suas ordens.
Júpiter ficou encantado com a nova deusa que surgia — parida por ele próprio! — e com
suas filiais e piedosas palavras.
Assim que veio ao mundo a mais útil e benemérita das divindades: Minerva, deusa da
sabedoria, do trabalho e das artes. E quanto às negras previsões da velha Terra, que ameaçavam
Júpiter com a chegada de um segundo e destruidor filho, deram, felizmente, em nada.
Júpiter ousou então debochar da anciã:
— Minha vó, suas profecias são furadas!
— Imbecil, furada é sua cabeça-de-vento! — disse a velhinha, que nada tinha de caduca.
— Bem se vê que fugiu o resto de sabedoria que havia na cachola.
E depois de assestar uma bela pancada na cabeça do neto, completou:
— Pois honre a mim, então, que sou a única divindade competente o bastante para fazer
reverter uma funesta profecia.

Vulcano, Deus das Forjas


Juno, esposa de Júpiter, descobriu um dia que estava grávida.
— Meu primeiro filho! — dizia ela, orgulhosa, a todo instante.
O Olimpo inteiro aguardava com ansiedade irreprimível o nascimento do primogênito de
Júpiter. Que tal seria? Teria a audácia viril do pai ou puxaria à beleza austera da mãe? E que
inclinações traria do ventre? O gosto pelas batalhas? O pendor bucólico dos pastores? Ou, quem
sabe, o refinado talento do artista?
Todas as indagações ficaram suspensas nas línguas, pois Juno estava agora prestes a parir
o bebê tão esperado.
De repente um grito atroou pelos corredores do palácio de Júpiter.
— Não, não... Meu filho, isto?!
Tais foram as primeiras palavras ditas pela mãe, ao receber nos braços a criança recémnascida:
um bebê peludo, de cor escura, como que encardido ou chamuscado, e que produzia
feições horríveis quando chorava — ou estaria, o pobre, a sorrir?
Júpiter, constrangido, afastara-se da deprimente cena — o primeiro drama doméstico e
familiar de uma série que teria de enfrentar. Juno, a seu turno, com a cabeça voltada em direção
oposta ao berço onde estava o bebê, roía as unhas.
"Eu, Juno, rainha do céu, mãe de um demônio", pensava.
O choro horrendo do bebê não cessava; não era, nem de longe, aquele choro forte e
melódico que se esperaria do filho do senhor do Universo. Não, aquilo não era um choro, mas
um guincho rouco e desprovido de qualquer encanto ou harmonia.
Juno, envergonhada daquele guincho humilhante, tapava os ouvidos, pressionando com
toda a força a polpa dos dedos roídos sobre a entrada de suas divinas orelhas. Mas o ronco, o
guincho, o chiar, o estrídulo, o relincho — o que quer que fosse aquilo — não cessava nunca.
— Basta, criatura! — disse Juno, pondo-se em pé com decisão. — Deve ter havido,
afinal, algum engano. Com este corpo de tritão, deve ser filho de Netuno, rei dos mares, e não de
Júpiter celestial. Volte, pois, para o seu lar.
Juno, cega de desgosto, ergue a criança do berço. Num esforço supremo o garoto ainda
tenta um último estratagema: dar à mãe um sorriso terno e alegre.
— Olha a boca esgarçada! Vai chorar de novo! — diz Juno, cega de ódio. Então, após
rodopiar por duas vezes no ar a infeliz criança, arremessa-a do alto do Olimpo. Um grito
medonho desce das alturas, e durante o dia e a noite aquela voz ecoa por mares e continentes. O
dia amanhece outra vez, e o menino peludo, feio e imensamente infeliz ainda voa, rodopiando
pelos ares. Seu destino parece ser o revolto mar que se abre lá embaixo, como uma goela azul e
escancarada, pronto para tragá-lo em suas ignotas profundezas.
"Escondido bem no fundo do oceano, ninguém jamais o descobrirá!", pensara a deusa,
um instante antes de arremessá-lo.
Duas massas líquidas e azuis, separadas como dois imensos lábios salgados, recebem,
então, o bebê, para se fechar logo em seguida com o fragor de duas ondas gigantescas que se
chocam, borrifando as estrelas lá no alto com um turbilhão de espuma.
— Que espantoso ruído foi esse? — pergunta Eurínome, filha de Tétis e do Oceano, à
sua mãe.
— Algo caiu do céu direto em nossos domínios — exclama Tétis, a mais bela das filhas
de Nereu e futura mãe do irado Aquiles.
— Vamos ver o que é! — grita Eurínome, seguida de imediato pela mãe.
No fundo do oceano, engolido pelas águas, está o pequeno e peludo garoto, a se debater
convulsamente entre as funestas ondas. Tétis agarra-o imediatamente e sobe com ele até a
superfície:
— Levemos o pobrezinho para terra.
Deste modo chegam os três à ilha de Lemnos. Após cuspir o resto da água que agoniava
seus pequenos pulmões, o pequeno ser pedala seus pezinhos e faz uma careta de choro para
aquela estranha que o tem em seus braços.
— Veja, que lindo sorriso! — diz Tétis, encantada.
Ao escutar essas palavras o serzinho se anima e remete agora, no melhor de seus
pequenos esforços, aquilo que pretende ser o mais grato dos seus risos.
— Veja, Eurínome, ele sorri de novo! — exclama Tétis.
Envolto em um cobertor, o garoto é levado para uma profunda e calorosa caverna.
— Aqui ele estará aquecido, o pobrezinho! — diz Eurínome, beijando a testa cabeluda do
pequeno deus, que conhece pela primeira vez o significado de um gesto chamado carícia e de um
sentimento chamado afeto.
As duas estão preparando a nova morada para o bebê, quando Tétis, voltando-se para
onde o bebê estava, percebe que ele sumiu.
— Onde se meteu este menino? — perguntam-se as duas nereidas.
O garoto, engatinhando, metera-se numa escura furna. Atraído pelo fogo da lava que
agitava-se nas profundezas da terra, lá vai ele, destemido, descobrir o que é aquilo. Será um
pedacinho desprendido do sol, que escorreu do céu para ir meter-se dentro da terra?
Um grito rouco atrai a atenção de Tétis e de sua filha.
— Ouça, ele deve estar nas grotas!
Elas o encontram sentado, com um pedaço de ferro metido entre os dedinhos
chamuscados; um trejeito de dor denuncia que ele e o Fogo já foram apresentados.
— Veja, ele sorri mais uma vez! — diz Tétis, encantada.
Entretanto, o cumprimento do Fogo, seu novo amigo, não foi dos mais delicados. Mas
este garoto já descobriu que o melhor é ir logo descobrindo o que o mundo tem de mau e
perigoso. Afinal, esta lição ele aprendeu do berço.
— Já que gosta tanto de vulcões, vamos chamá-lo de Vulcano — diz Tétis a Eurínome.
— Excelente nome! — brada a outra. — Vulcano. Vulcano. Vulcano.
O garoto volta-se misteriosamente para as duas. Nos seus dedinhos chamuscados brilham
duas pequenas coisinhas, delicadas e douradas.
— O que você tem aí, meu moleque?
Com um brilho radiante nos olhos, o pequeno Vulcano (Hefesto) estende às suas duas mães
adotivas dois pares de maravilhosos brincos, que ele mesmo confeccionara.
— Meu Zeus! — diz Tétis, com um riso cristalino que ecoa pelas paredes da profunda
gruta. — O danadinho é um artista!
Sim, Vulcano, acossado desde o primeiro instante pelo infortúnio, é alma forte e lúcida,
com discernimento bastante para fazer mudar em beleza a dor que o destino lhe remete.
Assim cresce o pequeno, metido em sua forja nas profundezas da terra, confeccionando
as mais belas peças de ferro, bronze e metais preciosos de todo tipo.
Aos nove anos já é artista bastante para fazer uma peça de beleza estonteante.
— O que é isto, Vulcano querido? — pergunta-lhe Tétis, sua mãe adotiva.
— Um presente para Juno, minha mãe! — exclama o deus, já um esperto adolescente.
Trata-se de um magnífico trono dourado, todo cinzelado e reluzente. No mesmo dia se
apresenta no Olimpo, carregando seu maravilhoso presente.
— Quem e você, feia criatura? — pergunta-lhe uma das Horas, porteiras do céu.
— O filho da rainha do céu — responde Vulcano. — Queira abrir os alvos portões,
subalterna.
Vulcano, como se vê, já aprendeu perfeitamente a se defender. Quando o jovem feio,
coxo e peludo apresenta-se nos salões do Olimpo, é recebido por um coro celestial de risos.
— Isto aí, filho de Júpiter e de Juno? — exclamam, incrédulos, os habitantes da morada
dos deuses.
Vulcano retira, então, o veludo que envolve o magnífico trono dourado.
— Aqui está, minha mãe, o presente com o qual pretendo ganhar a sua afeição!
Juno, que a princípio envergonhara-se de tal filho, agora o vê com outros olhos. Afinal, o
brilho que o trono dourado despede reflete-se um pouco sobre o seu corpo disforme, e um
monstro pintado a ouro já é, ao menos, pintado a ouro.
Juno, lavada em orgulho, senta-se, então, sobre o trono maravilhoso. Um coro
estrondoso de palmas ensurdece o Universo. Vulcano, beijando a mão de sua mãe, retira-se,
então, com um largo e dócil sorriso, como faria o mais vil de seus lacaios. "Não é mau garoto,
afinal!", pensa Juno. "Mas por que insiste em fazer cara de choro diante de minha presença?"
Durante o dia inteiro a rainha do céu despachou de seu novo trono.
— Vou comer aqui mesmo, em meu maravilhoso trono, a ambrosia e o néctar divinos —
diz ela a Hebe, a sua copeira.
Somente no fim do dia, quando seu traseiro divino começa a tomar um formato indigno
da formosura curvilínea de uma deusa, é que ela pensa em erguer-se, afinal, de seu trono
faiscante.
— Mas o quê? Como? O que se passa com minhas nádegas celestiais? -pergunta-se, ao
tentar erguer-se sem sucesso. — Hebe, Hebe, corra já aqui!
A afoita Hebe surge correndo.
— Hebe, Júpiter que me perdoe, mas não consigo levantar-me de meu maravilhoso
trono!
— Ah, Juno suprema, isto é compreensível! — diz Hebe, tentando ajudá-la com a maior
dignidade possível. — Afinal, você não desgrudou vossas nádegas sublimes um instante do
assento de vosso trono maravilhoso.
— Cale a boca e me ajude! — diz Juno, com o rosto escarlate do esforço.
Ajudantes são chamados. Gemidos de dor percorrem os corredores enquanto tentam
descolar a rainha do céu de seu trono maravilhoso, dourado e magnificamente cinzelado.
— Que lindas filigranas há aqui na base, deusa suprema! — diz um ferreiro, convocado às
pressas para desentalar a rainha do céu da prisão de seu sublime trono.
— Cale a boca e me tire daqui, maldito idiota, ou vou mandar fazer lindas filigranas você
sabe onde! — grita Juno, rainha do céu, começando a perder a realeza moral.
Ao cabo, nenhum dos deuses consegue libertar Juno.
— Chamem o desgraçado — diz, afinal, Juno, rendida. Vulcano volta ao palácio de sua
mãe.
— Vamos, filho ingrato, diga o que quer para me libertar de tamanho opróbrio! — diz
ela, fuzilando o filho com o olhar.
— Quero apenas ser recebido em minha casa com respeito e poder transitar livremente
pelo Olimpo, como deus e filho da maior das deusas — responde Vulcano, serenamente.
— Está bem, agora liberte-me — diz Juno, mais aliviada.
— Ah! — diz Vulcano, como quem lembra de algo muito importante. — Quero também
tomar por esposa a maravilhosa Vênus, pois amo-a perdidamente.
— Vênus... com você? — diz Juno, incrédula.
— Sim, bem sei que sou feio, mas conheço algo das mulheres para saber que não
desprezam, também, a segurança— responde Vulcano, deus sapientíssimo. — E com minha forja
possa sustentá-la e lhe dar todo o luxo e riqueza que sua beleza merece.
Vênus é chamada e, diante de proposta tão vantajosa, aceita imediatamente. Vulcano
toma suas delicadas mãos e deposita nelas o beijo de seus rudes lábios, e remete à mais bela das
deusas o seu melhor sorriso. "Ele me ama mesmo", pensa Vênus, "pois chora, diante de mim, de
felicidade!"
Assim Vulcano e sua mãe Juno fizeram as pazes, tornando-se o deus artífice amado e
respeitado em todo o Olimpo.